Resolvi recontar minha história. Sintetizá-la numa só publicação. Sei que ela está contada em várias postagens deste blog, mas resolvi contar de novo, de uma só vez.
O Grupo de apoio à Perda gestacional
Do Luto à Luta, me encorajou a fazer isto.
Espero que sirva de incentivo a outras mães, esperança para ir adiante e consolo nos dias difíceis.
Sempre quis ser mãe. Não me imaginava não sendo
Meus filhos tinham nomes. O primeiro, Samuel. Eu escolhi este nome, quando, por volta de uns 7 ou 8 anos, na escola, participei da semana da bíblia e conheci a história de Ana e seu filho o Profeta Samuel.
A fé de Ana, me fez crer que, um dia, eu também seria mãe de um Samuel.
Os anos se passaram e eu conheci o Flávio, meu marido. Namoramos por 3 anos e meio e casamos em Março de 2011.
Fiz um checkup geral, para saber se tinha condições de engravidar, e o resultado foi satisfatório. O Flávio também fez. Tudo nos conformes. Mas, a coisa não foi assim tão fácil. Apesar de não termos problemas de saúde, minha ansiedade era tão grande, que eu não conseguia engravidar. Fazia ultrassom para rastrear ovulação e nada.
Até que em fevereiro de 2012, quase um ano depois de casada, engravidei pela primeira vez. O problema é que, o que deveria ser alegria, me tirou os pés do chão, pois descobri a gravidez, justamente quando estava abortando. Estava de 6 semanas.
Foi ai que tive contato com minha primeira perda gestacional e com a crueldade das pessoas que negligenciam este tipo de perda.
- ainda bem que tava no comecinho. Pior é perder mais tarde.
Ou então,
- ele nem era nada ainda. Era só um embrião.
Chorei.
Sim. Fiquei triste. Eu queria aquele filho. Então tentei superar e ir adiante.
Passados 4 meses desta perda, em Junho daquele ano, uma alegria: eu estava grávida novamente.
Desta vez tudo ia bem, fiz meus exames de pré Natal, visualizamos o saco gestacional e o embriãozinho lá. Ainda muito pequeno, frágil. Pensei no quanto Deus era maravilhoso em me mandar aquele presente. Minha vida não poderia ser mais perfeita. Eu passava em frente à lojas de bebês e tinha vontade de comprar tudo, só pra ver minha casa permeada daquela atmosfera materna.
Mas, minha alegria foi interrompida naquele dia: 18 de agosto de 2012.
Descobrimos na ultrassom que o bebê, que tinha 13 semanas, cronologicamente, na verdade havia se desenvolvido até as 8/9 semanas. Não havia mais batimentos fetais.
Essa era a minha segunda despedida. Mais dolorosa que a primeira. Não por termos passado mais tempo juntos, mas porque parece que cada vez que tentamos algo e não somos bem sucedidos, perdemos um pouco da nossa alegria, junto com a esperança. Aborto retido.
Fui encaminhada ao bloco cirúrgico para fazer uma curetagem. Eu estava sentindo muitas dores. E tive que esperar várias horas, para completar o período necessário em jejum, para ser submetida a uma anestesia.
Tomei uma raqui.
A anestesista ficava conversando comigo, acredito que para ver meu nível de consciência, num determinado momento, veio o diálogo:
- você ta sentido medo?
- não.
- dor?
- não.
- porque você tá chorando?
(Quanto mais eu chorava, mais minha pressão subia, daí a preocupação dela)
- eu estou triste. Normalmente se entra aqui para ganhar bebê. Eu entrei para me despedir do meu.
- olha, vou te dizer uma coisa; já trabalho aqui há algum tempo e já vi esta cena mil vezes. Você vai engravidar novamente. E eu vou lhe anestesiar outra vez. Mas, da próxima vez, não vai ser para uma curetagem. Vai ser o seu parto. Tenha fé. Você vai ser mãe.
- as lágrimas continuaram jorrando. E aquelas palavras, de alguma forma, me consolaram.
Meu sonho parecia ficar cada vez mais distante. Por que pessoas que não queriam ser mães engravidavam, outras faziam abortos. Crianças jogadas na lata do lixo. Crianças violentadas, maltratadas... Meu coração doía ainda mais de tanto pensar nelas.
Uma mistura de sentimentos: ódio, revolta, tristeza. Tinha horas que tinha raiva de Deus. Porque Ele permitia que aquilo acontecesse na minha vida. Eu nunca entendi.
E, fora isso, mais uma vez à falta de caridade me esperava nos comentários cruéis das pessoas próximas.
- você ainda é jovem, pode ter quantos filhos quiser.
- pior é a fulana, ela teve 6 abortos.
- lembra da beltrana? Ela perdeu o bebê no parto e perdeu também a trompa.
- vc tem sorte pois pode engravidar quando quer. Pior é a minha cunhada que ja fez 3 inseminações. Gastou o que tem e o que não tem.
Tudo isso parecia me dizer que eu não sabia o que era o sofrimento. Que eu sofria menos que as outras pessoas. Ou ainda que para ser mãe, era necessário sofrer de verdade.
Menosprezam nosso sentimento. Desclassificam a nossa dor. É como se tivéssemos perdido um par de sapatos, ou qualquer objeto que pudesse ser imediatamente substituído, sem que o primeiro fizesse a menor falta. Isso me incomodava ainda mais.
Eu via o tempo passando e minhas chances perdidas. Duas gestações, nenhum bebê. Muita dor e menos esperança de realizar aquele que era meu grande sonho.
Mas eu sou forte. Sim. Eu sou e resolvi tentar mais uma vez.
Dia 02 de Dezembro de 2012, eu senti algo diferente: calor. Um calor absurdo. O calor de Dezembro. Estava na manicure quando ouvi uma conversa de uma desconhecida, contando como havia descoberto que estava gravida. Ela falou a palavra calor.
Faltava um dia para a minha menstruação (não) chegar. Mesmo assim, corri na farmácia E comprei um teste. A coisa la acendeu bem fraquinha, acredito que pela falta de concentração de hcg na urina, bem, não importava, eu estava de fato grávida!
Dessa vez eu não queria contar para ninguém. Só depois da morfológica se tivesse tudo bem.
Eu lembro do Natal daquele ano. O quanto chorei de felicidade, durante a festinha de Natal do trabalho, ao som de "Anunciação" do Alceu Valença.
"...tu vens chegando pra brincar no meu quintal."
Era o que eu pensava. O tempo todo.
Meus planos de esconder a gravidez até os 4 meses fracassaram, mas porque a barriga ficou saliente bem antes disso.
Acabei.contando primeiro para a família, depois para o pessoal do trabalho e depois aos amigos mais próximos.
Dessa vez ouvi mais pérolas :
- tá vendo, não disse que ia chegar a sua vez?
- Deus é bom. Ele viu que você merece.
Sabe, se fosse por merecimento, o Alexandre nardoni seria estéril.
Eu tentava abstrair, senão iria enlouquecer.
Em 25 de Março de 2013, com 5 meses de gestação, veio a confirmação: era ele. Meu Samuel.
Meu menino tão desejado. Tão sonhado.
Ele estava bem e eu também.
Eu era acompanhada por nutricionista, cardiologista, ginecologista, endocrinologista e tudo não poderia estar melhor.
O problema é que, ao que me parece, quando tudo vai bem, sempre acontece algo ruim. As vezes penso ser para testar a minha fé. Faço aqui um parêntesepara comentar sobe a minha mãe.
Neste intervalo de tempo em que estive concentrada na minha gestação, minha mãe sofria com uma doença que demorou muito para ser diagnosticada. Trata-se da esclerose lateral amiotrofica Ou ainda E. L.A., a doença do balde de gelo. Para quem não sabe, trata-se de uma doença incurável e degenerativa do neurônio motor. A pessoa perde os movimentos do corpo e passa a não conseguir mais realizar as atividades mais simples do dia a dia como: deglutir, respirar, andar, se limpar. Apesar Dessa falência geral, a consciência e a cognição permanecem inalteradas (recomendo que assistam o filme 'A teoria de tudo', para saber mais sobre isso)
Resolvi cuidar da minha mãe doente. A acolhi em.minha casa e cuidava dela todos os dias.
À medida em que minha gravidez avançava, ficava difícil continuar mantendo os cuidados com ela. Contratamos cuidadoras e elas faziam a maior parte do serviço.
No final da gravidez, muito cansaço. Eu só pensava no parto.
Apesar disso curti cada semana. Fiz ensaio de gestante, comprava blusas temáticas, decorei o quarto, fiz o enxoval do jeito que eu queria. Tudo era muito vivido. Escrevia em diários, e contava a história dele para que ele mesmo um dia pudesse saber.
Nem mesmo os frequentes enjoos ou os exames desagradáveis me faziam deixar de curtir cada momento.
Eu cantava e dançava pra ele. Embalados nas músicas que um dia ouviriamos juntos aqui fora.
Dia 06 de Julho de 2013, foi meu aniversário. Minhas sobrinhas sempre me presenteiam com lindos desenhos.Neste dia a Mariana me deu um desenho contendo um jogo de futebol com várias crianças e apenas uma delas usava asas, ao invés de uniforme.
Quando eu perguntei pq aquele menininho tinha asas. Elas disee: é o Samuel. Ele tem asas.
Eu me senti mal na época. Não gostei, mas guardei o desenho.
19 dias depois, ele partiu.
Ele tinha asas.
Era uma quarta-feira, dia 25 de Julho de 2013. Eu verifiquei que durante toda a tarde o Samuel não se mexia. Ele que era tão levado. Mexia demais. E sempre forte, parecia paralisado.
Quando o Flávio chegou do trabalho, pedi que me levasse a uma urgência para fazer uma ultrassom E ouvir o coração do bebê.
A única coisa que eu ouvi, foi o silêncio daquela sala. E o meu próprio choro.
A imagem parada na tela, a ausência de batimentos me deu a certeza que eu jamais queria ter.
Samuel havia ido pro céu.
E eu não consigo dizer isso sem derramar muitas lágrimas.
Meu filho me deixou.
Minha médica foi contactada e logo chegou ao hospital.
Parecia muito abatida. Ela me perguntou se eu preferia induzir o parto normal ou se queria uma cesariana.
Perguntou ainda se eu queria ver o Samuel.
O parto foi cesárea, porque o Samuel além de grande e gordinho, estava sentado e encaixado. Dificilmente teríamos sucesso com o parto normal. Na hora eu não quis vê-lo. Sei lá porque eu tinha medo dele. Dele ter sinais de sofrimentos. Eu não suportaria.
Mas, quando ele foi retirado, o Flávio disse: você ia adorar o que ia ver. Ele é lindo e perfeito. Parece um anjo dormindo.
Vi Meu filho sobre uma bancada, a cerca de uns 2 metros de mim.
Eu estava de fato sentindo a maior dor da minha vida.
Após o parto, fui para o quarto, a equipe médica teve o cuidado de me internar num andar que não era o da maternidade. Para evitar que eu ouvisse choro de outras crianças e visse os enfeites nas portas.
O Flávio foi cuidar do enterro
Aí Eu faço um comentário especial. Muito se fala na dor das mães. Mas pouco se fala na dor dos pais. Ela também existe e é tão grande quanto a nossa.
Eu não Sei se suportaria enterrar meu filho. Vê-lo num caixão escolher as flores... não. Eu não suportaria.
Enquanto nosso filho filho sepultado, as pessoas matavam ele novamente com seus comentários:
- foi melhor ele ir agora do que mais tarde você derruba-lo no chão e ele.morrer por sua causa
- quem sabe se ele não seria viciado em drogas e lhe daria o maior trabalhão depois.
- faz outro, besta. O bom é fazer.
- você vai ter outros filhos e irá esquecer tudo isso.
O fato é que tudo isso nos entristecia ainda mais.
Procuramos psicólogos, médicos psiquiatras, padres. Fomos diversas vezes à igreja e pouca, mas muito pouca gente mesmo sabia o que dizer.
Se por um lado não sofri violência obstétrica, por outro sofri a violência emocional, verbal, familiar. Apesar da morte ser algo certo na vida de todas as pessoas, quase ninguém sabe lidar com ela. O que fazer e o que dizer.
A violência ora velada, ora escancarada que nos fazia sepultar nosso filho novamente.
E assim se passou nosso primeiro ano sem ele.
Um ano depois, eu me senti pronta para tentar outra vez. Não fiz planos. Engravidei na primeira tentativa.
Tão logo eu soube o medo de perder este novo bebê tomou conta.
Não curti gravidez como gostaria. Não quis contratar fotógrafos (fiz eu mesma umas poucas fotos em casa), não tive chá de fraldas. Nada que me fizesse fiar grandes expectativas, tamanho o medo de uma nova decepção.
Minha quarta gestação era de uma menina, Sarah.
Foi muito tensa também por todo o contexto envolvido.
Aos 7 meses de gravidez, sofri uma queda com Q maiúsculo. Daquelas que deixam a gente toda estropiada. Eu só conseguia pensar na minha filha. Um exame de ultrassom me mostrou que, apesar de eu estar muito ferida, Sarah estava bem.
Fui afastada do trabalho e tão logo me recuperei da queda, um outro susto: a minha mãezinha foi levada pro céu. Conheceu o neto por quem tanto ela chorou.
Foi tanta tristeza.
Minha pressão subiu e 3 semanas depois, a Sarah veio ao mundo.
Sarah me chegou por uma cesariana de urgência, no dia 1 de abril de 2015, dia em que completava 35 semanas.
Com 2,655kg e 47cm e muita saúde. Minha menina trouxe a alegria que a minha casa precisava ter. Ela chegou em casa, 4 dias depois, como diz a música Anunciação "...que tu virias numa manhã de domingo..." e
Trouxe brinquedos espalhados no chão, roupinhas miúdas no varal, novas músicas, serões de madrugada, e muito amor.
Nunca saberemos os motivos pelos quais Deus não nos permitiu criar nosso Samuel, mas temos uma certeza: seu amor se faz presente. Eu tinha medo de não amar outro filho, como eu amava o meu Samuel. Mas, amor de mãe, não se divide entre os filhos. Ele se multiplica. Amor de mãe é divino.
Peço as mamães que viveram isso que procurem grupos de apoio: Do Luto à Luta, Mães de Anjo ou Mães sem nome. Certamente serão bem acolhidas.
PS: eu ainda continuo a ouvir frases terríveis. Mas faz parte das dores que carrego, da pedra no meu sapato. A gente empurra um pouquinho pra lá e segue caminhando. Deus segura a nossa mão.