Feliz (?) dia das crianças...

Hoje Sarah teve realmente seu primeiro dia das crianças. Ano passado ela ja tava por aqui, mas tinha apenas 6 meses e não ligava para muita coisa.
Hoje foi dia de ser criança. Passear com os papais, receber atenção especial dos tios, brincar pra valer com as primas e receber muito mimo dos avós.
Pensei também no meu menino, no quanto teria sido maravilhoso, se ele estivesse entre nós. Pensei nos pais e mães de outros anjinhos que tive a oportunidade de conhecer, no quanto este dia traz dor e sofrimento. Orei e pedi pela consolação de cada um.
Queria que eles soubessem que são pais e mães, sim. Que jamais deixaram de ser. Que não existe ex-pai e nem ex-mãe.
Não permitam que alguém os trate como quem não tem filhos, dizendo que "vai chegar a sua hora", pois isso não existe. A hora chegou. Tivemos um filho, sim! E ele foi brincar no céu. Deus deu, Deus levou. Ele que sabe todas as coisas.
Que Ele possa vos consolar. Junto com Nossa Senhora Aparecida, que tem o colo de uma mãe que acolhe e abriga, que possam colher nossas dores, enxugar nossas lágrimas, nos amparar nas quedas e fortalecer-nos sempre.
Para que possamos manter viva a memória dos nossos filhos e que o dia de hoje, possa voltar a fazer sentido para cada um de nós. Como hoje ele fez para mim.
Fiquem com Deus.
E um abraço bem apertado, em cada um. Eles sabem quem são.

Sempre comigo


Sem legenda. Só amor. E saudades...


É assim que imagino meu Samuel.

É assim que imagino meu gigante, no colo de Jesus. Entre tantas outras crianças que não são deste mundo.
Eu nunca soube por quê o meu menino me deixou.
Samuel me fez conhecer outras mães sem nome, como eu. Por causa dele, eu tive contato com tantas outras Patrícias e Flávios. Sim. Porque nessas horas, onde a dor é igual, nos tornamos iguais. O nome é o que menos importa.
Nestes 3 anos ja escrevi muito. Li muito. Falei muito. Ouvi nuita coisa que não quis e respondi do jeito que eu quis. (É pra isso que o cérebro fica perto da boca).
Aprendi sobre luto, sobre solidariedade, empatia.
Aprendi também sobre crueldade.
Descobri o quão despreparada para enfrentar a morte a humanidade está, embora esta seja a unica certeza que temos na vida.
Samuel me ensinou que um abraço, mesmo de quem ta longe, vale mais que qualquer palavra.
Por causa dele, me tornei uma mãe ilegítima. Era mãe por direito. Mas não de fato. Perdi meu aposto "Mãe de Samuel" e ganhei verbos no passado: "aquela que era mãe", "a que estava gestante". Tinha uma cicatriz no corpo, tinha leite jorrando. Mas, o colo vazio.
Aprendi também a conversar mais com Deus. Mesmo que sentindo raiva dele. Eu falava mais com Ele, nem que fosse para perguntar: "por que eu?" , ou "por que depois de tanto tempo?"
Com o passar dos anos, minhas lamentações viraram orações. E essas orações é o que tem me sustentado todo este tempo.
Não é facil viver com o vazio que ele deixou.
Não é facil ver o rostinho dele, refletido no da irmãzinha.
Não é facil olhar a cara de pena das pessoas, quando digo que tenho 2 filhos.
Não é facil ver o menosprezo delas, quando digo que perdi um filho "que nem teve convívio ".
Não é facil ouvir "você é muito mal agradecida. Deus ja lhe deu uma filha". Ou "tambem tive um aborto, mas esqueci".
Uma vez um padre me disse que era uma honra ser a mãe de um anjo de Deus. Que se Ele me escolheu, é porque sabia da minha capacidade e jamais daria uma grande batalha a um soldado fraco.
Isso nunca me consolou.
Porém, sigo a minha fé, que diz que um dia estaremos todos juntos, num lugar especial, onde não há tristeza. E onde nunca mais precisaremos nos despedir. E é assim, como nesta foto, que imagino meu filho
Até lá é saudade...saudade e saudade...

Pode ser coincidência ou um presente dos céus.

No último domingo, antes de irmos à missa, paramos em uma padaria, para tomar café da manhã.
Ao entrarmos no salão da padaria, Flávio se dirigiu a uma mesa, com Sarah e eu fui até o balcão, fazer nosso pedido.
De longe, fiquei observando onde eles foram se sentar. Uma mesa próxima a outra que tinha um menino entre 2 e 3 anos e sua mãe, tomando café da manhã.
O menino tinha carrinhos de brinquedo e Sarah estava bem interessada nos brinquedos. A mãe do menino disse:
- Empresta um pra ela, filho?
O menino, prontamente, deu um dos seus carrinhos à Sarah e ficou interagindo com ela.
Quando cheguei para sentar à mesa, a mãe do menino perguntou à Sarah:
- Como é seu nome, neném?
Flávio perguntou:
- Como é seu nome, filha, diga?
- Sarah.
A mãe do menino disse: viu filho, o nome dela é com S, que nem o seu.
Flávio e eu nos olhamos e perguntamos ao mesmo tempo, como se soubéssemos da resposta:
- Qual o nome dele?
- Samuel.
...
(dois suspiros, uníssono)
Respondi:
- Seu nome é muito lindo. É o nome do meu filho.
A mãe do menino olhou, com cara de quem queria saber o porquê do meu Samuel não estar ali, e eu completei:
- Ele foi pro céu.
- Ah, sinto muito. Também perdi um filho.
Eu não quis mais prolongar a conversa e começamos a comer.
Eu senti uma vontade absurda de abraçar aquele menino, de colocar ele no braço, pra ter uma noção do espaço que ele ocupa, de quanto pesa, do cheirinho que ele tem. Mas, guardei minha vontade, pois em tempos de pedofilia, eu poderia ser mal interpretada e Deus me livre alguém pensar isso de mim.
Eu não sei porque essas coisas acontecem. Mas quando elas acontecem, eu sinto saudades. É possível sentir saudades do que não se teve, do que não se viveu, da história que nos foi tomada. Eu deveria sentir alegria e achar que era Deus querendo falar comigo e dizer que tá cuidando bem do meu menino.
Mas, racionalmente, eu não consigo.

Como eu me tornei a mãe de um anjo.

Resolvi recontar minha história. Sintetizá-la numa só publicação. Sei que ela está contada em várias postagens deste blog, mas resolvi contar de novo, de uma só vez.
O Grupo de apoio à Perda gestacional Do Luto à Luta, me encorajou a fazer isto.
Espero que sirva de incentivo a outras mães, esperança para ir adiante e consolo nos dias difíceis.


Sempre quis ser mãe. Não  me imaginava não sendo
Meus filhos tinham nomes. O primeiro, Samuel. Eu escolhi este nome, quando, por volta de uns 7 ou 8 anos, na escola, participei  da semana da bíblia e conheci a história  de Ana e seu filho o Profeta Samuel.
A fé  de Ana, me fez crer que, um dia, eu também  seria mãe  de um Samuel.
Os  anos se passaram e eu conheci o Flávio, meu marido. Namoramos por 3 anos e meio e casamos em Março  de 2011.
Fiz um checkup geral, para saber se tinha condições  de engravidar, e o resultado foi satisfatório. O Flávio  também  fez. Tudo nos conformes. Mas, a coisa não  foi  assim tão  fácil.  Apesar de não  termos  problemas  de saúde, minha ansiedade era tão  grande, que eu não  conseguia engravidar. Fazia ultrassom para rastrear ovulação e nada.
Até  que em fevereiro de 2012, quase um ano  depois de casada, engravidei pela primeira vez. O problema é  que, o que deveria ser alegria, me tirou os pés do chão, pois descobri  a gravidez, justamente  quando estava abortando. Estava de 6 semanas.
Foi ai que tive contato  com minha primeira  perda gestacional e com a crueldade  das pessoas que negligenciam este tipo de perda.
- ainda bem que tava no comecinho. Pior é  perder mais tarde.
Ou então,
- ele nem era nada ainda. Era só  um embrião.
Chorei.
Sim. Fiquei triste. Eu queria aquele  filho. Então  tentei superar e ir adiante.
Passados 4 meses desta perda, em Junho daquele ano, uma alegria: eu estava grávida  novamente.
Desta vez tudo ia bem, fiz meus exames de pré Natal, visualizamos o saco gestacional e o embriãozinho lá. Ainda muito pequeno, frágil. Pensei no quanto Deus era maravilhoso em me mandar aquele presente. Minha vida não  poderia ser mais perfeita. Eu passava em frente à  lojas de  bebês e tinha vontade de comprar  tudo, só  pra ver minha casa permeada daquela atmosfera materna.
Mas, minha alegria  foi interrompida naquele dia: 18 de agosto de  2012.
Descobrimos  na ultrassom que o bebê, que tinha  13 semanas, cronologicamente, na verdade havia se desenvolvido até  as 8/9 semanas. Não  havia mais batimentos  fetais.
Essa era a minha segunda  despedida. Mais dolorosa que a primeira. Não  por termos  passado mais tempo juntos, mas porque parece que cada vez que tentamos algo e não  somos  bem sucedidos, perdemos um pouco da nossa alegria, junto  com a esperança. Aborto retido.
Fui encaminhada ao bloco cirúrgico  para fazer uma curetagem. Eu estava sentindo  muitas dores. E  tive que esperar  várias horas, para completar o período necessário em jejum, para ser submetida a uma anestesia.
Tomei uma raqui.
A anestesista ficava conversando comigo, acredito que para ver meu nível  de consciência, num determinado  momento, veio o diálogo:
- você  ta sentido  medo?
- não.
- dor?
- não.
- porque você  tá chorando?
(Quanto mais eu chorava, mais minha pressão  subia, daí  a preocupação  dela)
- eu estou triste. Normalmente  se entra aqui para ganhar bebê. Eu entrei para me despedir do meu.
- olha, vou te dizer uma coisa; já  trabalho aqui há algum tempo e já vi esta cena mil vezes. Você vai engravidar  novamente. E eu vou lhe anestesiar outra vez. Mas, da próxima  vez, não  vai ser para uma curetagem. Vai ser o seu parto. Tenha fé. Você  vai ser mãe.
- as lágrimas  continuaram jorrando. E aquelas palavras, de alguma forma, me consolaram.
Meu sonho parecia ficar cada vez mais distante. Por que pessoas que não  queriam ser mães  engravidavam, outras faziam abortos. Crianças  jogadas na lata do lixo. Crianças  violentadas, maltratadas... Meu coração  doía ainda mais de tanto pensar  nelas.
Uma mistura de sentimentos: ódio, revolta, tristeza. Tinha horas que tinha raiva de Deus. Porque Ele permitia que aquilo acontecesse na minha vida. Eu nunca entendi.
E, fora isso, mais uma vez à falta de caridade me esperava nos comentários  cruéis  das pessoas próximas.
- você ainda é  jovem, pode ter quantos filhos  quiser.
- pior é  a fulana, ela teve 6 abortos.
- lembra da beltrana?  Ela perdeu o bebê  no parto e perdeu também a trompa.
- vc tem sorte pois pode engravidar quando  quer. Pior é  a minha cunhada que ja fez 3 inseminações. Gastou o que tem e o que não tem.
Tudo isso parecia me dizer que eu não  sabia o que era o sofrimento. Que eu sofria  menos que as outras pessoas. Ou ainda que para ser mãe, era necessário  sofrer de verdade.
Menosprezam nosso sentimento. Desclassificam a nossa dor. É  como se tivéssemos perdido um par de sapatos, ou qualquer objeto que pudesse ser imediatamente substituído, sem que o primeiro fizesse a menor falta. Isso me incomodava ainda mais.
Eu via o tempo passando e minhas chances  perdidas. Duas gestações, nenhum bebê. Muita dor e menos esperança  de realizar aquele que era meu grande sonho.
Mas eu sou forte. Sim. Eu sou e resolvi tentar mais uma vez.

Dia 02 de Dezembro de 2012, eu senti  algo diferente: calor. Um calor absurdo. O calor  de Dezembro. Estava na manicure quando ouvi uma conversa de uma desconhecida, contando como havia descoberto  que estava  gravida. Ela falou a palavra calor.
Faltava um dia para a minha menstruação  (não) chegar. Mesmo assim, corri na farmácia  E comprei um teste. A coisa la acendeu bem fraquinha, acredito que pela falta de concentração de hcg na urina, bem, não  importava, eu estava de fato grávida!
Dessa vez eu não  queria contar para ninguém. Só  depois da morfológica se tivesse tudo bem.
Eu lembro do Natal daquele ano. O quanto chorei de felicidade, durante a festinha  de Natal do trabalho, ao som de "Anunciação"  do Alceu Valença.
"...tu vens chegando pra brincar no meu quintal."
Era o que eu pensava. O tempo todo.
Meus planos de esconder a gravidez  até os 4 meses fracassaram, mas porque a barriga ficou saliente bem antes disso.
Acabei.contando primeiro para a família, depois para o pessoal do trabalho e depois aos amigos mais próximos.
Dessa vez ouvi mais pérolas :
- tá  vendo, não  disse que ia chegar a sua vez?
- Deus é  bom. Ele viu que você  merece.
Sabe, se fosse  por merecimento, o Alexandre  nardoni seria estéril.
Eu tentava abstrair, senão  iria enlouquecer.
Em 25 de Março  de 2013, com 5 meses de gestação, veio a confirmação: era ele. Meu Samuel.
Meu menino tão  desejado. Tão  sonhado.
Ele estava bem e eu também.
Eu era acompanhada por nutricionista, cardiologista, ginecologista, endocrinologista e tudo não  poderia estar melhor.
O problema é que, ao que me parece, quando tudo vai bem, sempre acontece algo ruim.  As vezes penso  ser para testar  a minha fé. Faço  aqui um parêntesepara comentar sobe a minha mãe.
Neste intervalo  de tempo  em que estive concentrada na minha gestação, minha mãe  sofria com uma doença que demorou muito para ser diagnosticada. Trata-se da esclerose lateral amiotrofica Ou ainda E. L.A., a doença  do balde de gelo. Para quem não  sabe, trata-se de uma doença incurável e degenerativa do neurônio  motor. A pessoa perde os movimentos  do corpo e passa a não  conseguir mais realizar as atividades  mais simples do dia a dia como: deglutir, respirar, andar, se limpar. Apesar  Dessa falência  geral, a consciência e a cognição  permanecem  inalteradas  (recomendo que assistam o filme 'A teoria de tudo', para saber mais sobre isso)
Resolvi cuidar da minha mãe doente. A acolhi em.minha casa e cuidava dela todos os dias.
À  medida em que minha gravidez avançava, ficava difícil continuar mantendo  os cuidados com ela. Contratamos cuidadoras e elas faziam a maior parte do serviço.
No final da gravidez,  muito  cansaço.  Eu só  pensava no  parto.
Apesar  disso curti cada semana. Fiz ensaio de gestante, comprava blusas temáticas, decorei o quarto, fiz o enxoval do jeito que eu queria. Tudo era muito vivido. Escrevia em diários, e contava a história  dele para que ele mesmo um dia pudesse saber.
Nem mesmo  os frequentes enjoos ou os exames desagradáveis me faziam deixar de curtir  cada momento.
Eu cantava e dançava  pra ele. Embalados nas músicas  que um dia ouviriamos juntos aqui fora.
Dia 06 de Julho de 2013, foi meu aniversário. Minhas sobrinhas sempre me presenteiam com lindos desenhos.Neste dia a Mariana me deu um desenho contendo um jogo de futebol  com várias crianças e apenas uma delas usava asas, ao invés de uniforme.
Quando eu perguntei pq aquele menininho tinha asas. Elas disee: é  o Samuel. Ele tem asas.
Eu me senti mal na época. Não  gostei, mas guardei o desenho.
19 dias depois, ele partiu. 
Ele tinha asas.

Era uma quarta-feira, dia 25 de Julho  de 2013. Eu verifiquei que durante toda a tarde o Samuel  não  se mexia. Ele que era tão  levado. Mexia demais. E sempre forte, parecia paralisado.
Quando o Flávio  chegou  do trabalho,  pedi que me levasse  a uma urgência  para fazer uma ultrassom  E ouvir o coração  do bebê.
A única coisa que eu ouvi, foi o silêncio  daquela sala. E o meu próprio  choro.
A imagem parada na tela, a ausência  de batimentos  me deu a certeza  que eu jamais  queria ter.
Samuel havia ido pro céu.
E eu não consigo dizer isso  sem derramar muitas lágrimas.
Meu filho me deixou.
Minha  médica foi contactada e logo chegou ao hospital.
Parecia muito abatida. Ela me perguntou  se eu preferia induzir o parto normal ou se queria uma cesariana.
Perguntou  ainda se eu queria ver o Samuel.
O parto foi cesárea, porque o Samuel além  de grande e gordinho, estava sentado e encaixado. Dificilmente teríamos  sucesso  com o parto normal. Na hora eu não  quis vê-lo. Sei lá porque eu tinha medo dele. Dele ter sinais de sofrimentos.  Eu não  suportaria.
Mas, quando ele foi retirado, o Flávio  disse: você ia adorar o que ia ver. Ele é  lindo e perfeito. Parece um anjo dormindo.
Vi Meu filho sobre uma bancada, a cerca de uns 2 metros de  mim.
Eu estava de fato sentindo a maior dor da minha vida.
Após  o parto, fui para o quarto, a equipe  médica teve o cuidado de me internar num andar que não  era o da maternidade.  Para evitar que eu ouvisse choro de  outras crianças e visse os enfeites nas portas.
O Flávio foi cuidar do enterro
Aí  Eu faço  um comentário  especial. Muito se fala na dor das mães.  Mas pouco  se fala na dor dos pais. Ela também  existe e é  tão  grande quanto a nossa.
Eu não  Sei se suportaria enterrar meu filho. Vê-lo num caixão escolher as flores... não. Eu não  suportaria.
Enquanto nosso filho filho sepultado, as pessoas matavam ele novamente com seus comentários:
- foi melhor ele ir agora do que mais tarde você  derruba-lo no chão e ele.morrer por sua causa
- quem sabe se ele não seria viciado em drogas e lhe daria o maior trabalhão depois.
- faz outro, besta. O bom é  fazer.
- você  vai  ter  outros filhos e irá  esquecer tudo isso.

O fato é  que tudo  isso  nos entristecia ainda  mais.
Procuramos  psicólogos, médicos  psiquiatras, padres. Fomos diversas vezes à  igreja e pouca, mas muito pouca gente mesmo sabia o que dizer.
Se por um lado não  sofri violência  obstétrica, por outro sofri a violência  emocional, verbal, familiar.  Apesar da morte ser algo certo na vida de todas as pessoas, quase ninguém sabe lidar com ela. O que fazer e o que dizer.
A violência ora velada, ora escancarada que nos fazia sepultar nosso filho  novamente.
 E assim se passou nosso primeiro ano sem ele.
Um ano depois, eu me senti pronta para tentar outra vez. Não  fiz planos. Engravidei  na primeira tentativa.
Tão  logo eu soube o medo de perder este novo bebê tomou conta.
Não  curti   gravidez como  gostaria. Não  quis contratar fotógrafos (fiz eu mesma umas poucas fotos em casa), não  tive chá  de fraldas. Nada  que me fizesse fiar grandes expectativas, tamanho o medo de uma nova decepção.
Minha quarta gestação  era de uma menina, Sarah.
Foi muito tensa também  por todo o contexto  envolvido.
Aos 7 meses de gravidez, sofri uma queda  com Q maiúsculo. Daquelas  que deixam a gente toda estropiada. Eu só conseguia  pensar na minha filha. Um exame de ultrassom me mostrou que, apesar de eu estar muito ferida, Sarah  estava bem.
Fui  afastada do trabalho e tão  logo me recuperei da queda, um outro susto: a minha mãezinha foi levada pro céu.  Conheceu o neto por quem  tanto ela chorou.
Foi tanta  tristeza.
Minha pressão  subiu e 3 semanas depois, a Sarah  veio ao mundo.
Sarah me chegou  por uma cesariana de urgência, no dia 1 de abril de 2015, dia em que completava  35 semanas.
Com 2,655kg e 47cm e muita saúde. Minha menina trouxe a alegria que a minha casa precisava ter. Ela chegou em casa, 4 dias depois, como diz a música Anunciação "...que tu virias numa manhã de domingo..." e
Trouxe brinquedos espalhados no chão, roupinhas miúdas no varal, novas músicas, serões de madrugada, e muito amor.
Nunca saberemos os motivos pelos quais Deus não  nos permitiu criar nosso Samuel, mas temos uma certeza: seu amor se faz presente. Eu tinha medo de não amar outro filho, como eu amava o meu Samuel. Mas, amor de mãe, não se divide entre os filhos. Ele se multiplica. Amor de mãe é divino.
Peço as mamães que viveram isso que procurem grupos de apoio: Do Luto à Luta, Mães de Anjo ou Mães sem nome. Certamente serão bem acolhidas. 

PS: eu ainda continuo a ouvir frases terríveis. Mas faz parte das dores que carrego, da pedra no meu sapato. A gente empurra um pouquinho pra lá e segue caminhando. Deus segura a nossa mão.







" Aviso que vou acabar Chorando"


“Aviso que vou acabar chorando”


A blogueira Estéfi Machado traz um relato emocionante sobre como enfrentou a morte prematura de seus filhos gêmeos e faz um lembrete: falar sobre o assunto é muito importante.

Por  

No dia seguinte da morte de seus gêmeos, a blogueira Estéfi Machado escreveu uma carta para os amigos dizendo que precisava chorar e falar sobre o que havia acontecido. Dois anos depois ela relembra aqui sua história e faz um apelo: “Se estiverem com alguém com uma história difícil pra contar, por favor, não desvie o olhar e não sugira falar sobre ‘coisas mais alegres’”.

Estéfi, os gêmeos na barriga e o primogênito Tom, expressando todo seu amor num desenho
Estéfi, os gêmeos na barriga e o primogênito Teo, expressando todo seu amor num desenho

Em depoimento a Sandra Soares
Tenho um filho de 8 anos.
Desde que ele tem 2 anos eu tento engravidar novamente.
Sou a terceira de 5 irmãos, e sempre considerei irmão um item indispensável na vida do ser humano.
Depois de muitas tentativas, engravidei quando meu filho tinha 4 anos.
Com 8 semanas de gravidez descobri que o coração do bebê nunca tinha batido, e tive então um aborto retido.
Depois de muito choro e bola pra frente, comecei a tentar de novo, logo em seguida da primeira perda. Fiquei 2 anos tentando, até que resolvi fazer uma inseminação artificial. Um processo simples: estimulei a ovulação, monitorei e num certo momento tinha lá dois óvulos promissores um mais “fraquinho”. As chances eram pequenas, mas qual não foi minha surpresa, depois de ter recebido o positivo e comemorado muito… Vimos no primeiro ultrassom que eram… 3 corações batendo!
Um misto de alegria, euforia e pânico, meu marido quase desmaiou na salinha escura, mas o clima era de gol de copa do mundo!
As semanas foram passando, e ultrassom após ultrassom, num certo momento descobrimos que um dos embriões não estava mais se desenvolvendo, fato aparentemente normal em gravidez múltipla, o embrião não vai pra frente e acaba sendo absorvido pelo corpo.
O tempo foi passando e, devo dizer, a gravidez de gêmeos é bem puxada…
É de verdade tudo em dobro.. enjoos, pressão na barriga, pequenos incômodos são duplicados quando se espera dois bebês.
Estava com 21 semanas, já entrando no sexto mês de gravidez, todos grandes e perfeitamente saudáveis, quando tive um pequeno sangramento, outra coisa “normal” nesse tipo de gravidez, já que todo espaço é muito disputado ali dentro.
Só que esse sangramento aumentou e formou um pequeno coágulo no meu útero, que começou a dar pistas falsas pro meu corpo que entrou em franco trabalho de parto para expulsar o coágulo.
Fiquei internada mais de 10 dias tentando de tudo para conter as contrações, sem sair da cama nem pra fazer cocô, mas a natureza veio maior que tudo…
No dia 2 de Fevereiro, dia de Iemanjá, pari de parto normal meus dois bebês, meus dois filhos, que eu sabia que não iriam sobreviver.
Breno e Cecília já tinham nome, bercinhos, roupinhas e casa nova, e não vieram.
Ainda no hospital tive que tomar um remédio para secar o leite, já que meu corpo não sabia que eu não teria ninguém para amamentar.
Passei dias com os seios enfaixados com gaze, apertados como pé de gueixa, para eles não terem vontade própria e jorrarem leite pra ninguém…
Meu marido estava há 16 horas de voo, e tudo foi muito difícil.
Os bebês quase precisaram de enterro e caixão, mas devido ao peso não entraram na obrigatoriedade desses trâmites.
Perdi muito sangue, fui sedada logo após a expulsão, então não tive um ritual de despedida, não por negligência de ninguém, apenas pela fragilidade do momento…
Ir pra casa sem meus filhos, ter que dar todo amor e consolo pra mim, pro meu marido e pro meu filho que me esperava assustado não foi fácil.
Sei que cada um tem seus próprios mecanismos para lutar suas batalhas, mas eu preferi falar.
No dia seguinte ao parto escrevi uma carta para meus amigos e família (veja abaixo), e me ajudou muito contar como tudo tinha sido e receber o carinho de todos de volta.
Chorei muito, por muito tempo e, acreditem, ainda tenho muita lágrima pra chorar.
Mas o que eu quero contar aqui, dentre tantas coisas valiosas que eu aprendi, é que quando a boca fala, o corpo sara MESMO.
Então, se estiverem com alguém com uma história difícil pra contar e a pessoa começar a falar, por favor, não desvie o olhar e não sugira falar sobre “coisas mais alegres”.
Se estamos falando sobre isso é porque realmente precisamos, e acredite, de alguma maneira você foi especialmente escolhido pra ajudar nesse processo.
Vamos falar sobre o luto sim.
O coração e alma agradecem.

Em meio a um turbilhão de emoções e sentimentos, Estéfi decidiu escrever uma carta a seus amigos. Veja abaixo:
03 de fevereiro de 2013.
Amigos queridos…
Recebi tantos recadinhos carinhosos de apoio nesses últimos dias que resolvi agradecer por aqui e contar um pouco do que aconteceu…
Acho que também me ajuda a por pra fora e a cobrir um pouco esse rombo que tenho na alma…
Como muitos de vcs sabem, eu estava grávida de gêmeos, de 5 meses já…
Já tinham nomes, personalidades, roupinhas, planos e mil sonhos…
Semana passada tive um sangramento e fui internada no São Luiz para fazer um repouso absoluto e tentar conter um mini início de trabalho de parto.
Mas o que antes foi um susto, com os dias se transformou em um franco trabalho de parto.
Fizemos de tudo, todos os recursos, todas as drogas, manobras, exames… Mas a força da enxurrada da natureza foi maior…
Quinta e sexta já estava com fortes contrações, dilatação e sábado passei o dia inteiro na luta contra a dor, sem poder fazer muita coisa, nem uma cesárea podia ser feita, porque estava perdendo muito sangue e corria o risco de perder o útero…
Mas com muita força e sofrimento também, a noite já tinha dilatação suficiente e puder parir os dois de parto normal, sem transfusão de sangue e sem nenhum dano pro útero…
Senti bem os 2 nascerem e sabia a todo momento que eles não sobreviveriam…
Isso tudo foi e está sendo muito dolorido, parece que a dor não vai passar nunca, que as lágrimas nunca vão secar, mas também tenho a sensação de ter aprendido grandes lições…
Não que não mereço, nem que Deus não quis… Mas que não adianta tentar driblar a força da natureza.. Nem antes, planejando, tentando corrigir e se antecipar… E muito menos depois, tentando conter uma avalanche que é muito maior que a nossa vontade…
Espero estar mais alegrinha quando encontrar e abraçar cada um de vocês, mas preparem as camisetas pq vou acabar chorando… Mas sei que nas camisetas de vcs eu posso!
E pras minhas amigas gravidinhas, que são muitas, não hesitem em dar noticias dos bebês, vou querer visitar cada um com a mesma alegria e torcida que já estava antes, a dor pode conviver do ladinho do amor.
Beijos muito grandes, obrigada por cada mensagem, cada torpedinho, tenho certeza de que me ajudou muito e continua ajudando até agora.
Estéfi

Fonte: http://vamosfalarsobreoluto.com.br/2016/02/02/aviso-que-vou-acabar-chorando/

"O clube secreto e silencioso das grávidas que perdem seus bebês'

Dando sequencia aos textos sobre perda gestacional, eis mais um:



O clube secreto e silencioso das grávidas que perdem seus bebês

RITA LISAUSKAS
02 Fevereiro 2016 | 11:14

Existe uma regra social: Precisamos superar a perda rápido. E não podemos sofrer.


Desabafo da jornalista Clarissa Cavalcanti, 32, dois abortos recentes, ao “Ser mãe”.
Sem receber convite eu entrei para um clube secreto de mulheres. Um clube que eu até já tinha ouvido falar, algumas pessoas da família e amigas participavam, mas que eu nunca soube muito a respeito. Depois que eu fui forçada a entrar, descobri que milhares de mulheres fazem parte, mas tudo é mantido meio às escuras. Eu entrei para este clube pela primeira vez em março de 2015. Foi quando tive meu primeiro aborto retido – aborto involuntário que acontece quando uma mulher não consegue manter a gestação. Não estou falando do aborto provocado, que é uma outra questão e eu particularmente acho que é caso de saúde pública e precisa ser discutida. Depois de nove semanas de gestação e curtindo muito a ideia de ser mãe descobri no ultrassom que meu bebê não tinha batimentos cardíacos. Tive que esperar uma semana para repetir o exame e ter certeza. Certeza de que meu tão sonhado filho tinha morrido muito antes de nascer. Foi a primeira tortura. Optei por esperar para ver se meu corpo agia naturalmente mas, como nada aconteceu, tive de fazer uma curetagem.
Nesse período de tristeza muita gente veio comentar comigo que tinha passado por algo parecido, que era comum. Gente que eu nunca imaginei que tinha enfrentado algo semelhante porque nunca demonstrou sinais do sofrimento que um aborto causa. E aí eu me perguntava: Se toda essa gente passou ou conhece alguém que passou por isso, por que ninguém fala sobre o assunto? Por que o aborto é tabu mesmo quando ele não é uma escolha da mulher? Todos falavam comigo como se estivessem compartilhando o maior dos segredos, como se fosse um crime ter perdido um bebê. Quem passou por isso sabe que os sentimentos de culpa, raiva, revolta e tristeza se misturam e demoram a passar. Descobri, graças às frases que ouvi, que existe uma regra social: a de que devemos superar rápido. Escutei coisas como: “Era  um feto!”“A gravidez estava no começo, não precisa sofrertanto!” Percebi também que há pessoas que comparam dores: “Pior foi o que aconteceu com a fulana! Seu caso não é nada!”, concluem, usando a própria régua para medir o sofrimento alheio.
Muitos profissionais não estão preparados para lidar com a mulher que acabou de perder seu bebê e até a acusam veladamente de ter feito um aborto proposital. Uma colega que também faz parte desse “clube secreto” me contou que que foi para o hospital quando sofreu o aborto em casa. Foi super mal tratada. Insinuaram que ela tinha provocado o aborto, fizeram perguntas duras e ela teve, mesmo que veladamente, provar que não, não tinha culpa pelo desfecho ruim da própria gestação. Imagine como se sente uma mulher que está perdendo o bebê que tanto sonhava, que precisa de atendimento e acolhimento e, em vez disso, tem de provar que não, a culpa não é dela. Uma conhecida me relatou que soube que tinha perdido o bebê em um ultrassom, perto dos cinco meses.  O médico comunicou com uma frase seca: “esse bebê morreu”.
Comigo o tratamento não foi muito mais amistoso. A primeira enfermeira que me atendeu antes da curetagem deveria colocar um remédio via vaginal para amolecer meu útero e facilitar o procedimento. Ela o fez com tanta força, sem o menor cuidado e com tanta grosseria que dei um grito de dor. Fragilizada e culpada achei que era assim mesmo, frescura minha. Uma segunda enfermeira me mostrou que não, não era para ter sido feito daquele jeito. Ela me disse, indignada, que o procedimento deveria ter sido precedido por um gel, para não haver (mais) dor.  Hoje penso que a primeira enfermeira acreditava que eu tinha provocado aquele aborto e que, por isso, merecia sofrer. O hospital também me internou no mesmo andar do berçário. Eu tinha acabado de perder um filho e via as plaquinhas com os nomes dos bebês na porta, que logo chegavam para serem amamentados, além de ver famílias felizes visitando os novos pais. Não seria isso uma violência psicológica? Como ninguém fala sobre isso, como é “normal” perder um bebê e há um silêncio sepulcral sobre o assunto, fica tudo por isso mesmo. Nossa dor não é ouvida. Sequer considerada.
Em novembro de 2015 descobri que estava grávida novamente. A felicidade voltou. Na primeira ultrassonografia ouvi o batimento cardíaco do meu bebê super forte, a barriga estava crescendo e eu não conseguia nem disfarçar a nova gestação. Estava confiante.
Um sangramento mudou tudo e perdi meu bebê novamente há alguns dias. De uma forma até mais abrupta ganhei uma segunda “carteirinha” e fui arrastada para o clube secreto novamente. No andar da maternidade tinha poucos bebês dessa vez, mas nunca vou esquecer a cena do pequeno Caíque sendo levado ao quarto para mamar enquanto eu passava de maca para a curetagem. Aquilo doeu. No pré-operatório a enfermeira me contou que, na média, são nove curetagens por dia. Fiz a conta e percebi que, só nesse hospital, são 270 mulheres passando por isso todo mês. Imagine quantas mulheres no Brasil todo. E mesmo assim continuamos sem falar sobre esse assunto.
Existe um outro clube secreto: o dos pais. E esse então é mais secreto ainda. O pai não tem vez nessa hora. Ninguém liga para o que ele sente. É quase impossível tirar algo positivo disso tudo. Talvez o fato de descobrir que somos mais fortes do que imaginamos. E que tenho amigos e chefes sensacionais.
Fonte: http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/ser-mae/o-clube-secreto-e-silencioso-das-maes-que-perdem-seus-bebes/

"Quando o parto é a Partida"

Gostaria de compartilhar alguns textos, para que possa sensibilizar as pessoas. São dos blogs: Sempre Família, Vamos falar sobre o luto e Do Luto à luta.

Para começar vamos com este:


Quando o parto é a partida

Unidas pela dor da perda gestacional, as irmãs Larissa e Clarissa transformaram sofrimento em aprendizado dando início ao projeto Do Luto à Luta

Por  

A psicóloga carioca Larissa Rocha Lupi, 32, viveu duplamente a dor de ter uma gravidez interrompida – em um intervalo de seis meses, ela e a irmã gêmea, Clarissa, sofreram abortosespontâneos. A tristeza dilacerante, a insensibilidade clínica e a incompreensão dos familiares e amigos, que pouco sabiam o que fazer para ajudar, fizeram com que Larissa unisse esforços para dar voz ao silêncio das mães que perderam seus filhos prematuramente. Ela criou o projetoDo Luto à Luta, por mais sensibilidade, solidariedade e cuidado com a perda gestacional e neonatal, buscando mudanças políticas efetivas e melhorias nos atendimentos médicos. Um trabalho que busca não só minimizar o sofrimento das famílias, mas transformar uma dor muito velada em uma causa pública. Larissa também é representante do “Temos que falar sobre isso”, uma plataforma de desabafos anônimos online destinada a dar voz às dores e dificuldades relacionadas a gravidez e ao pós-parto. 
Em depoimento a Laura Capanema

“Com quase dez semanas de gravidez, minha irmã perdeu o bebê. As causas não foram bem esclarecidas, mas tudo indicava uma espécie de ‘seleção natural’: quando a gestação é cessada naturalmente pelo próprio organismo. Ou seja, segundo os médicos, uma situação relativamente ‘comum’, especialmente nos três primeiros meses. Mas pouco se fala no assunto. Muitas das mulheres que já viveram isso – mães de filhos que não nasceram – passaram a carregar uma incompreensão e uma solidão enorme em seus ventres. Quem sofre perda gestacional ou neonatal precisa enfrentar de cara o tabu que existe em torno da morte de alguém que não nasceu (ou pouco viveu).
A Clarissa já era mãe de um menino, mas planejava a segunda gravidez havia três anos. A frustração com a gestação descontinuada fez com que ela quase entrasse em depressão. Além de sentir um vazio gigante, encarou a dificuldade de amigos e familiares em compreender a dimensão da sua dor. A maioria dizia o clássico ‘relaxa, daqui a pouco você engravida de novo’ e ignorava o fato de que o aborto significava uma perda real e, especialmente naquele caso, um sonho abruptamente interrompido. A concepção de um novo filho jamais supriria a falta daquele que partiu. Não era tão simples assim.
Um dia depois de receber a notícia ela foi a uma maternidade particular da Zona Sul do Rio para fazer a curetagem. Ali, inesperadamente, compartilhou a enfermaria com mães que haviam acabado de dar à luz (escutando de relance o choro das crianças que acabavam de nascer). Além disso, a equipe médica exprimia uma dureza imensurável. O doutor disse friamente: ‘o seu filho não era um bebê, era só um feto. Um feto que não apresentava batimentos cardíacos’. Uma linguagem extremamente técnica e impassível para alguém tão fragilizada. Eu, que acompanhei tudo de perto, não tive dúvidas de que a logística daquela clínica maximizava o sofrimento da paciente e problematizava a elaboração do luto.
Um mês se passou e ela continuava muito angustiada. Mas engravidou. De novo. Só que dessa vez a novidade era dupla: eu também estava grávida. Saímos do pesadelo e entramos em uma euforia compartilhada – éramos gêmeas e estávamos gestantes, juntas, ambas do segundo filho! Nos falávamos diariamente e cuidávamos muito uma da outra. Contudo, vivíamos agoniadas. Do lado dela, uma gravidez angustiante, com sentimentos misturados pelo vazio da perda anterior e pela expectativa de uma nova vida. Do meu, um medo esquisito de poder reviver tudo o que ela havia passado naquele ano.
Mas a Clarissa teve um final feliz, apesar do Henrique ter nascido prematuro, com 34 semanas – a bolsa estourou e foi preciso recorrer a uma cesariana às pressas (ela acredita que o fato de ter engravidado de novo em seguida, de não ter esperado mais tempo para elaborar o luto, tenha contribuído para uma gravidez mais frágil; e daí a prematuridade). Comigo foi bem diferente: com quase cinco meses (19 semanas), tive um sangramento e voltei para a mesma clínica em que a minha irmã dizia não querer pisar tão cedo. E perdi o bebê. Segundo o médico, meu embrião estava desforme – fui diagnosticada com gravidez molar, doença causada por uma má formação celular em volta do feto.
A situação pesou quando me levaram para um quarto decorado com uma cegonha na porta. O carregador da maca chegou a me parabenizar pelo meu bebê – aquele que eu tinha perdido. ‘Gente, mas ninguém aqui lê o prontuário? Ninguém procura se informar sobre o estado dos pacientes?’ – eu perguntava indignada. Ainda precisei brigar com os médicos porque queria o meu marido comigo durante o processo de curetagem (pedido que foi negado). Me senti desrespeitada e desacolhida, e ainda julgada pelos meus desejos.
Fui sedada e acordei em um ambiente completamente asséptico, sem nenhum rastro. Eu queria ver o que os médicos haviam extraído de mim – por mais que não houvesse de fato um bebê, o vestígio do embrião representava a existência do meu filho, e ter acesso a isso me possibilitaria concretizar a sua morte. Ninguém me ouviu. Havia ali uma equipe que se dizia sensível e humanizada, mas preparada apenas para o happy end, para a eclosão. Eles não sabiam lidar com o fracasso.
perda gestacional é um luto invisível – se o bebê não nasce com vida, as pessoas acreditam que de fato a mãe não se vinculou a ele… afinal, ‘ele nem nasceu’, ou ‘nasceu, mas não viveu’. Além de haver uma inabilidade da nossa própria cultura em lidar com o finitude, ainda é mais difícil nesses casos, quando as mães são matriarcas de um breu, de um nada, de um sopro.
A situação exige treinamento e qualificação para que os médicos saibam como vincular essa notícia da melhor maneira possível. Claro que não vai eliminar a nossa dor, mas é importante que a gente sinta um mínimo de empatia pelo ser humano que está do outro lado. Viver essa aflição duas vezes fez com que eu sentisse a necessidade de ajudar outras famílias, quebrar paradigmas e lutar por ambientes hospitalares mais acolhedores e sensíveis. Tentar evitar violências secundárias.
Como ponto de partida, organizei um abaixo-assinado reivindicando mais cuidado por parte da maternidade que violou os nossos direitos – se não uma ala inteira reservada para perdas gestacionais, um quarto separado – e que os profissionais fossem treinados para ter mais cautela com esse tipo de paciente. Era preciso falar sobre esse luto e ir além: fazer parcerias com os hospitais e equipes de saúde.
Em dezembro de 2014, três meses depois, conseguimos, enfim, fazer uma reunião com a equipe médica. A clínica não chegou a criar uma ala separada, mas passou a identificar os quartos com uma cor diferente – roxo – para casos de gravidez de risco.
Comecei a divulgar minha história e recebi inúmeros desabafos, inclusive de pessoas próximas que eu nem sabia que haviam passado por isso. A quebra do silêncio enfatizou o quanto a questão ainda é velada no nosso país. Foi aí que decidi criar a fan page Do Luto à Luta, hoje com mais de 14 mil seguidores. A designer que fez nossa identidade visual passou pela mesma experiência e profissionais de diversas áreas se familiarizaram com a causa. Elaboramos uma plataforma colaborativa que organiza grupos de apoio, indica acompanhamento psicológico e faz posts com sugestões de filmes e livros sobre o assunto. Também lutamos ativamente na política: é com lágrimas nos olhos que recebemos a notícia da aprovação da PEC Nº 16/25 por unanimidade na Alerj. O Projeto de Emenda Constitucional dispõe sobre a licença maternidade e paternidade aos servidores e funcionários públicos em casos de perda gestacional e nascimento prematuro. Quem nos ajudou nessa foi a advogada Maíra Fernandes, mulher de fibra, garra e ousadia, ex-presidente do Conselho Penitenciário do Rio, e que também viveu de muito perto essa dor – ela enfrentou recentemente a perda do primeiro filho, Antônio. No parto.
Para nós é de extrema importância tentar não sucumbir ao drama. E buscar resinificar, atribuir um novo olhar à existência. É preciso enxergar o quanto a dor pode ser importante para mudar o próprio sentido da vida – diante dela, o ser humano amadurece e pode voar longe.
Também realizamos encontros presenciais uma vez por mês, em uma sala no Largo do Machado (que já está ficando pequena para uma dezena de participantes). Recebemos pessoas que se sentem diretamente afetadas pela perda gestacional – a mãe, o pai, a irmã, qualquer um que se julgar sensibilizado e quiser compartilhar sua dor. Falar já é altamente terapêutico e profilático. Sempre cito a frase do psicólogo Adalberto Barreto, do Ceará, que fundou a terapia comunitária no Brasil: ‘Quando a boca cala, o corpo fala. E quando a boca fala, o corpo sara’.”


Fonte: http://vamosfalarsobreoluto.com.br/2016/01/25/quando-o-parto-e-a-partida/